Mrs. Dalloway

"Não, agora nunca mais diria, de ninguém neste mundo, que eram isto ou aquilo. Sentia-se muito jovem; e, ao mesmo tempo, indizivelmente velha. Passava como uma navalha através de tudo e ao mesmo tempo ficava de fora, olhando. Tinha a perpétua sensação, enquanto olhava os carros, de estar fora, longe e sozinha no meio do mar; sempre sentira que era muito, muito perigoso viver, por um só dia que fosse."

Mrs. Dalloway - Virginia Woolf

Retrato...

   Irrequieto, o jovem repousou a cabeça sobre chão de madeira empoeirado. Os cabelos anarquistas turvaram ainda mais a visão já tão confusa do mundo. Quis erguer-se. Romper a inércia. Sair porta a fora e lutar pelos seus ideais, cometendo erros dos quais no futuro pudesse orgulhar-se. Tanto criticava, tanto pensava: nada fazia. Tal e qual toda a sua geração. Jovens que criticam o descaso com a educação e com a saúde. A política e o capitalismo.  São esses mesmos jovens que passam dias na frente de notebooks, iPad's e cia, conectados a redes sociais falando, falando, falando. Como são cansativos! Que desperdício de palavras e escassez de atitudes. Enchem seus mundos virtuais de revolta contra políticos corruptos e contra as desigualdades sociais. Vivem pregando mensagens de "salve a natureza", mas a cada seis meses aparecem desfilando com um novo celular.
   "E eu estou preso à mesma realidade. Afinal, que faço eu?" Pensou o jovem tomado de uma infelicidade ilimitada consigo mesmo. A resposta veio vazia. Resumida a um "nada" seco como a tosse que irrompeu sofrivelmente de seu peito. Nada fazia. Além de querer, como tantos outros, mudar mundo. E o que fazer com uma geração de jovens com tanta vontade e nenhuma ação?

Fica pra outro dia...

   Aí você pensa que vai começar bem. Porém não é assim que funciona. Logo nas primeiras horas decisivas do mês, sua cabeça é trespassada por um turbilhão de pensamentos que pulsam e doem contundentemente. E a noite termina assim: você desabando com roupa impregnada de rua e gente, sapato e maquiagem borrada na cama. Depois do terceiro comprimido de um genérico qualquer pra amenizar a dor, a vida fica em câmera lenta. A espera um telefonema que não é feito. A campainha calada. Qualquer coisa que afaste os pensamentos indesejados serve. Os vinis jogados pelo chão lembram do toca disco quebrado no fundo do guarda-roupa. Aquele que você nunca levou no conserto. Amanhã levo. Não, amanhã é sábado. Segunda quem sabe. E você sabe que segunda vai chegar cheia de compromissos (in)adiáveis, e que não, você não vai sair da rotina. Por que não? Ligo o som para preencher o vazio do quarto. Deixo tocar o CD que estava ali. Infinita Highway começa dilacerando o silêncio sepulcral da noite. Inundando-me de vida. Vontade cigana de viajar por aí. Sem ter destino. Só para pensar e ver o que há de novo nesse mundo velho. O novo da vida. O novo dentro de mim. Tiro os sapatos que caem no chão aliviando meus pés. Busco na cabeceira da cama meu livro e viajo para a França com Sartre.  Enquanto Antoine Roquentin está descobrindo a falta de sentindo da sua vida, eu tento entender a minha. É a náusea. Introspectiva, fecho o livro e cá estou de volta. Encolho os joelhos junto à barriga e me viro para a parede repleta de rostos famosos. Dou boa noite ao Chicho Buarque. Good Night,  Marlon Brando. Bonne nuit, Alain Delon. Buenas noches, Che Guevara. Apago a luz, desligo o som. A falta de sentido prevalece, porém já passa das duas e é tarde demais para pensar em temas tão abstratos. Segunda-feira eu penso nisso.


Por um mundo com mais Led Zeppelin...

   Meio ano. Meio sem sentido. Meio sem razão. Sabe. Meio assim... Meio que totalmente. D i g i t a r espaçadamente por não saber ao certo como dizer o que se quer dito. Talvez medo. Ou não. Tanto descompasso que cá estou, assim, perdida e despida de qualquer raciocínio lógico. A canção era a mesma daquela outra noite. O solo perturbador de Page inundando os sentidos. A cadência pulsando em meu peito. As palavras confortantes me davam esperança para seguir mesmo sem saber..." Just believe and you can't go wrong. In the light you will find the road. You will find the road." Saber o quê? O que nós precisaríamos saber naquele momento, meu bem? Sem contingências sobre nós, sobre o futuro. Estava tudo explícito na luz plácida da noite. Noite sem lua. Apenas os seus braços ao meu redor. O chiado do toca disco antigo a rodar infatigável. O piar grave das corujas velando a escuridão por nós. E você ali... comigo. A canção continuava. "Though the winds of change may blow around you, but that will always be so." Que a canção não cesse. Que esse momento não acabe. Que continue e continue e continue o mesmo sempre que os primeiros acordes da música soarem. E então tudo voltará. Voltará a ser o mesmo.

Julho de desencontros

   Eu percebi que quando quero colocar meus pensamentos em ordem, começo a organizar e a limpar as coisas. Como se arrumando tudo, minha vida fosse se endireitar um pouco também. Sabe, ultimamente eu tenho fugido das minhas obrigações domésticas. Talvez uma parcela da minha desordem se deva a isso. Uh, não. Apagando isso... A desordem da cozinha é mais provável. Teorias. Mas voltando, aconteceu isso hoje. Um desses surtos de limpeza repentinos. Ou surto de personalidade. E o que eu vi na minha frente? Uma pilha de louça. Perfeito para um pouco de paz interna, não? Não adianta, mãe. Isso não acontece depois do almoço. Com toda a louça do almoço repousando sobre a pia.
   As ideias mais interessantes afluem no polir da chaleira, ou de uma panela qualquer, na torneira pingando, (se soubesse a onomatopeia referente ao barulho de uma torneira pingando, ela caberia aqui). Já passei da idade de aprender a terminar o que eu começo ou fech... Com o pensamento centralizado como normalmente não acontece e fugindo da minha dispersão usual, eu ouço a pergunta: quais são as suas prioridades? Nesse ponto, eu começo a me torturar. E aí, mocinha, quais são os seus princípios? E as suas prioridades? Hein? Mas outra voz vem e... Não seja tão cruel consigo mesma. Quer dizer, existe o mundo para isso. E as verdades que os pais cismam em dizer quando a gente menos quer ouvir. Mas eu preciso de uma resposta. Resta saber onde buscar uma. 

A Invenção de Hugo Cabret - Brian Selznick

Para o João, por me ter feito ler um dos livros mais lindos que eu já li.
"Sabe, as máquinas nunca têm peças sobrando. Elas têm o número e o tipo exato de peças que precisam. Então, eu imagino que, se o mundo inteiro é uma grande máquina, eu devo estar aqui por algum motivo. E isso quer dizer que você também deve estar aqui por algum motivo."


Tristão e Isolda






Primeiro o destino finge afastar aqueles que depois vai implacavelmente reunir.
Tristão e Isolda

Definir...

Felicidade. Como definir? Segundo o dicionário, a felicidade é bem-estar, o estado de quem é feliz. Taí, pode ser. Dizem que existem pessoas felizes. Que são felizes apesar de às vezes balançarem para a tristeza. Enquanto há pessoas que não alcançam a felicidade mas também tem seus momentos de alegria. Não penso assim. Existem, realmente, pessoas tristes. Muito. Porém e alguém feliz? Não inteiramente. Penso que a felicidade é aquele intervalo sublime entre as tristezas, entende?

L.F.T.

"Não era amada? Não, certamente não. Mas continuaria amando, amando até - morrer, não. Até viver de amor."
Lorena em As Meninas, Lygia Fagundes Telles

Foto

Resposta...

   Sob a sua escrivaninha sei que repousam algumas folhas com uma letra miudinha e caprichada, letra de carta, dessas que a gente faz uma vez na vida e outra na morte. Ainda mais hoje, que as cartas entraram em ostracismo. Do lado dessas folhas deve estar o envelope com endereço e selo. Você não me respondeu, aliás, é claro que não. E eu nem esperava que fosse diferente. Ninguém responde as minhas cartas. Superei isso. Fazer o quê se tenho péssimos correspondentes... Portanto, essa é a minha resposta ao seu silêncio, entendido? Já que as respostas da vida andam perdidas por aí, espero que a minha chegue até você. Esses correios são meio enrolados, sabe, mas ainda sim são mais confiáveis do que quem entrega as respostas que a gente espera da vida. Essas aí acabam sendo extraviadas. E quando chegam, se é que chegam, a gente já até mudou de endereço. Essa vida, vou te contar. 
   Soube que você andava triste, triste, triste. Sinta a ênfase. Você não estava apenas triste. Tristeza equilibrada é saudável e inspiradora, porém esse não era seu caso. Você estava hiperbolicamente triste. Uma dessas tristezas que nem muitos abraços consolam. Quis saber o por quê. Você me falou. Preferia não ter escutado. Não consigo associar a imagem alegre que eu sempre tive de você com aquela tristeza que não parecia ser sua. Parecia mais ser uma tristeza do mundo todo. Além de tristeza, era um não querer viver tão forte... Penso que a vida nunca foi tão desdenhada por alguém. Quando te encontrar, um tapa na bunda vai anteceder o abraço. Tapa merecido pela genuína preocupação que eu senti pela sua vida. Fiquei imaginando você atravessando as ruas sem olhar e o trecho daquela música do The Smiths me veio à cabeça (ouça minha voz a cantarolar): 
" And if a double-decker bus 
Crashes into us
To die by your side 
Such a heavenly way to die
And if a ten-ton truck
Kills the both of us
To die by your side
Well, the pleasure and the privilege is mine." 
   Mas ela só serve se eu estiver junto, viu? Enfim, eu sei que você precisava falar. E só eu podia te ouvir. Não me contentei com a resposta que eu te dei aquele dia. Passei muito tempo pensando sobre o que você havia me dito e agora é a sua vez de ouvir o que eu tenho a dizer. Prest'enção. Na maior parte do tempo a gente não está feliz, pulando por aí, rindo por qualquer coisa. Essa sua angústia existencial é normal. Tinha um escritor que dizia que só se deve fugir da tristeza quando ela se torna um hábito. Não deixe que esse sentimento de descaso em relação à vida e de infelicidade seja maior do que você. Eu só consigo te imaginar de uma forma: sorrindo seu sorriso mais espontâneo do mundo. Assim que eu sempre me lembrarei de você. Tudo cansa mesmo, mas aí a gente descansa pra cansar tudo de novo. Acho que é disso que você anda precisando, um descanso bem bom. Sem mais, despeço-me por aqui. Sei que resposta não há, sequer espero. Cuide-se. Olhe para os dois lados antes de atravessar e estampe um sorriso nesse rosto!

Canto à Saudade...

Lá, desejo de estar aqui. Aqui, desejo de voltar. Eis-me, Saudade. Sei que és a sina silente cismando em meu destino. Moldando-se nos mais peculiares objetos. Tomando formas inesperadas. Mutável porém constante. Perscrutando em reminiscências adormecidas algum doce momento ou alguém que perdi. Sob andrajos, ó infeliz Saudade, teimas em trazer as latejantes insígnias de pesares incubados. Não me enganas sobre isso. Pensas que não sei que também nas dores há uma parcela ínfima de ti? Estás em toda parte. Por vezes, és tão intensa que corrói te sentir. Em retratos mofados, nas linhas escritas em papel de desabafo, na casa dos avós, nos livros da infância, no primeiro amor, na primeira perda: lá estás. Habitas cada côncavo espaço do úmido território das memórias. És um trem de regresso que insiste em descarrilhar no sentir. Mas sabes de uma coisa? Ó Saudade, não te sentir seria infindavelmente pior!

A você...


Começarei como nunca se deve começar, pedindo perdão. Peço perdão pelo meu descaso em sentir a sua falta, pois creio que em termos de falta, essa foi a minha maior. Passei um bom tempo sem dedicar a você algumas palavras. Também sem que a sua lembrança viesse tão nítida até mim. Mas noite passada você estava lá. Ritmos de outros tempos me remeteram à sua imagem dançante, ao sorriso meio torto, ao olhar ora perdido ora irônico. E já faz tanto tempo que você partiu... Você me pergunta pelas novidades? Sabe, eu cresci. Cortei o dedo enquanto picava tomate, levei um tombo e levantei, chorei e sorri. Enfim, essas coisas da vida que vem e vão. Se eu não vou perguntar por você? Não. Sei que você vai bem. Vai como pode, como ia aqui e como sempre irá aonde estiver. Fico angustiada às vezes, te culpando e invejando. Culpo suas atitudes incoerentes e simultaneamente invejo a sua audácia. Quisera ter metade da sua coragem. Outros a herdaram. Não sei se era a melhor parte de você, entende. As consequências foram amargas. Não, mas não é sobre isso que eu quero falar. Já perdi o foco. Sobre o que falávamos mesmo? Ou melhor, em  que parte do meu monólogo eu tinha parado? Você acaba me confundindo com a mania de não responder diretamente. Busco as respostas nos livros que você leu, nos filmes que viu, nas músicas que ouviu e nas pessoas. Busco no olhar do Gregory Peck, nos livros do García Marquéz, nas canções do Vinícius e nas palavras daquela que melhor te conheceu. Espero um dia conseguir compreender ao menos metade do que você foi. Não sei se poderei te descrever como outrora você me pediu. Mas eu tentarei, prometo que sim.

Um cheirinho, muitas saudades e adeus. 

Apego...

Sabia. Antes sabiá, mas não: era o verbo saber. No fundo ela negava essa consciência incômoda da realidade. Quiçá com eles fosse diferente. Afinal, em muitos outros aspectos eles diferiam dos demais. No entanto, e se fossem iguais? Rechaçava a ideia com um menear convulso de cabeça e cabelos. Estava tudo tão bem, por que pensar nisso? Talvez justamente por isso, por estarem bem. Doía imaginar-se sem ele. Não há fuga, são incansáveis as indagações sobre o cantado e louvado "para sempre". E é tudo tão provisório. As coisas, as pessoas e ainda mais os sentimentos. O apego, porém, não sabe como interpretar o fim ao se deparar com um. Nessas encruzilhadas sentimentais, Vinícius simplesmente sabe e salva.
Sobre o amor, dizia ele em um de seus mais belos sonetos: 
"Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure."

Henry Miller e o Tempo...


"Bóris acaba de oferecer-me uma síntese de suas ideias. É um profeta meteorológico. O tempo continuará ruim diz ele. Haverá mais calamidades, mais morte, mais desespero. Não há a menor indicação de mudança em parte alguma. O câncer do tempo está-nos comendo. Nossos heróis mataram-se ou estão se matando. O herói, então, não é o Tempo mas a Ausência de Tempo. Precisamos acertar o passo, em ritmo acelerado, em direção à prisão da morte. O tempo não vai mudar."


Diálogo...

    A conversa era um tête-à-tête noturno entre amigos. Os assuntos transitavam do dia de um para o dia do outro. Ia de questões metafísicas como o amor e a saudade aos vícios e acontecimentos triviais. No final do dia, resta um sabor granuloso na boca, um estremecimento nas mãos. Algo em nós que precisa expressar a essência do que aconteceu. Alguns escrevem diários, outros falam e escutam.
    Naquele dia, em especial, ele se atrasara. Quando chegou, o amigo já estava lá. Sentado com a postura ereta, testa franzida e o olhar perdido. Mantinha as mãos pousadas sobre as pernas segurando o chapéu. Aproximou-se do amigo com um cumprimento cordial. Mal havia se acomodado, duas canecas fumegantes de café foram trazidas.
- Ora, já pediu?
- O de sempre, como sempre. - respondeu abrindo um sorriso o companheiro que até então permanecera sério.
- Como foi seu dia?
- Surpreendentemente bom para um sexta-feira 13.
- Como se você fosse muito superticioso... - retrucou tirando um cigarro do bolso e acendendo-o rapidamente.
   O sinal de que a conversa de fato começava era a fumaça lúgubre do cigarro pairando sobre eles, lembrando Humphrey Bogart e dando à cena o elemento que faltava para completar o noir da noite. Após alguns instantes pensativo, o amigo do chapéu falou:
- A vi ontem. Ela parou de fumar, arrumou um namorado... Continua a mesma pequena de atos audaciosos, língua afiada e, ao mesmo tempo, jeito meigo. - concluiu com o suspiro que só conhece quem já amou.
- E isso significa que você continua...
- Não - interrompeu o amigo do chapéu antes que o amigo do cigarro terminasse a frase. Não - continuou - não sinto o que presumi que sentia..
- Amigos?
- Grandes Amigos. Mas e seu dia? Como foi?
- Teve sua parcela de alegria e sua parcela de angústia, como todos os dias tem - disse inquieto o amigo do cigarro batendo ritmicamente os dedos na mesa de madeira antiga.
- E qual foi a parcela boa?
- Vi a minha pequena pessoa.
- A ruim?
- Talvez ela não seja tão minha assim...
- Ciúmes? - indagou pousando o chapéu sobre a cadeira ao lado e analisando a expressão conhecida do amigo.
- Sim... Ela parece distante, como se não sentisse tanto quanto eu. E eu sei que sou egoísta e possessivo.
- Grande coisa, todo o ser humano é.. Talvez ela simplesmente não saiba demonstrar, mas você sabe que ela sente. Eu sei que você sabe.
   Terminou o cigarro, depositou-o sobre o cinzeiro de metal e acendeu o segundo da noite.
- Preciso aprender a moldar meus sentimentos... Você liberta, eu prendo.
- Você não prende com os ciúmes. Apenas sente-se inseguro por achar que ela se importa mais com outras pessoas do que com você.
- Você liberta, não adianta... Eu prendo sem querer. Prendo querendo libertar.
   Ao conversar, eles aconselhavam-se a si mesmos aconselhando um ao outro. O amigo nada mais é do que o nosso eu projetado. Ou seja, o diálogo era de eu para eu.
- Mas, sabe... - começou pausadamente o amigo do chapéu - quando as pessoas estão próximas, nenhum artifício se faz necessário para prendê-las. No entanto, quando elas estão longe, utilizo uma corda, a qual denomino saudade. Ela é amarrada nos corações daqueles com quem tenho alguma ligação. À medida que as pessoas se afastam, a corda vai se esticando e mais vai apertando. Dói. A dor mostra que há sentimento pela pessoa: os laços se fortalecem.  Mesmo que as pessoas não estejam perto, a corda não prende, apenas mantem o elo.
   Após ouvir as palavras do amigo do chapéu, o amigo do cigarro ergueu-se. Desfez-se do cigarro, desanuviou o olhar. Fitou o amigo e disse:
- Talvez eu tenha compreendido o ciúme agora.. Nada é além de uma saudade incontida de quem está ao nosso lado. Um protesto às vezes silente, às vezes gritante, de qualquer forma, um protesto por mais atenção.
  Ao terminar de pronunciar essas palavras, precipitou-se em direção à porta
- Adeus, preciso encontrá-la... Já não é ciúme o que sinto. E não posso guardar esse sentimento.
   Ensaiou um adeus. O amigo respondeu com um aceno de cabeça. Logo que fechou a porta atrás de si, soaram as doze badaladas do sino da igreja. Era meia noite. Um novo dia começava.

Cotidiano...

   Ela remexia minuciosamente cada compartimento de sua bolsa. Tirava um bloco de notas e uma caneta, colocava de volta. Erguia a carteira espreitando os cantinhos mais escondidos, achava cacarecos há muito perdidos e esquecidos. Mas o que ela procurava, definitivamente não estava ali. O rapaz ao seu lado observava calado a cena cotidiana. Era sempre assim. Ela era assim. Paciente, como quem vê pela milésima vez o mesmo filme, ele aguardava o final conhecido. Enfim, já conformada com mais uma perda, ela cessou a procura.Olhou pensativa o semblante penalizado e ao mesmo tempo divertido do rapaz.
- Você perde tudo! - exclamou ele. 
- Eu sei - disse ela meneando a cabeça para trás enquanto avaliava a dimensão de todas as suas perdas. 
- Essa sua habilidade de perder as coisas...
- Se ao menos fossem só coisas. Eu perco chaveiros e chaves. Perco no xadrez e nas damas. Perco o horário e o ônibus. Perco uma piada e um sorriso. Cidade pequena ou grande, me perco nas duas. E o pior: perco pessoas. Ou elas se perdem de mim...
   Sua voz foi aos poucos silenciando. Sem saber ao certo o que responder, o rapaz se calou. O silêncio entre ambos. A perda das palavras. Talvez a consciência das perdas pesando sobre eles. Na perda, um ganho: estridente, uma voz soou ao longe. Já não era mais silêncio.
- Moça! Ei! Espera... - foi dizendo apressada a dona da voz. - Ó, acho que isso é seu. - concluiu entregando um antigo relógio de bolso. O mesmo objeto há pouco procurado, considerado perdido e, em um desenlace inesperado, reavido.
- Ah, obrigada! - respondeu atônita, observando alegre o pequeno relógio entre seus dedos. As iniciais do avô gravadas em ouro continuavam ali, como há 30 anos. 
- Viu? Você perde tudo, isso é inegável. Mas o perdido sempre ou quase sempre, ou melhor, sempre que verdadeiramente seu, volta pra você. - disse sabiamente o rapaz.
De fato, a sina da moça era perder. Seu destino era reencontrar. 

Melancolia...

Em uma caixa abandonada, lembranças esquecidas repousavam indiferentes ao mundo. Elas permaneciam incólumes apesar dos anos, das distâncias e das pessoas. A essência de cada uma era a mesma, independente da coloração envelhecida, do bolor e das marcas do tempo. Recortes de jornais e revistas com fotografias dos atores e cantores prediletos. Desenhos feitos há tanto tempo que os traços já eram quase irreconhecíveis. Textos escritos nos piores e nos melhores momentos. Alguns expressando toda a emoção da alegria e outros toda a dimensão da tristeza. Cartas nunca enviadas. Poemas sem um fim. Retratos do que fomos com a insígnia do instante e, no segundo seguinte, o veredito do passado. Piscamos e passou. Sorrimos, choramos e o riso e a lágrima já não sabem mais o que são. Não devia ser assim, tão fugaz e forte. É duro sentir a cada instante o instante que se aproxima prestes a começar. E não sei mais o que sentir. Entre o que passou, o que é e o que está para ser. Mas há de ser sempre assim, a constância do tempo contrastando com a inconstância do sentir.

A lição do dia...

Hoje aprendi uma das lições mais importantes de toda a minha vida. E levei 14 anos para aprender. Olhando pelo lado positivo, antes tarde do que nunca, não? Pois bem, vou repassar minha experiência. Você pode até esquecer o aniversário de um amigo ou o aniversário de casamento. Pode esquecer de pegar a toalha ao entrar no banho. Pode esquecer de apagar as luzes quando sai. Pode esquecer de um compromisso. Pode esquecer o fogão ligado e quase incendiar a casa. Pode quebrar dois copos no mesmo dia. Pode até mesmo deixar o café esfriar. Pode esquecer de quase tudo. Mas NUNCA se esqueça: se abrir, F-E-C-H-E!

A ti, noite, um pouco de Drummond.

Passagem da noite

É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.
E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor nem paz, é noite,
é perfeitamente noite.

Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam de sono,
o mundo se recompõe.
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções;
De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo o que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos.
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!
Carlos Drummond de Andrade


Sempre quis escrever um poema sobre a noite. É noite. Noite de domingo. Noite que não deseja findar, como todas as noites de domingo. Porém a pior das noites se alegra com os versos de Drummond. Sendo assim, que venha mais uma manhã clara de segunda, pois o essencial... Bom, o essencial é viver.

Sobre o verbo "piorar"...

Manhã agradável à sombra das árvores com um amigo e um violão, canções e trechos de livros. Almoço com o sorriso que me leva a sorrir tomando Guaraná. E, é claro, fazendo todos os trocadilhos imagináveis e inimagináveis. A tarde passa vagarosa. Através das cortinas mal fechadas, escapam raios radiantes de sol. A luz convidativa inspira sonhos desesperados de fuga. Quem nunca quis fugir de uma aula sonolenta de Geografia? Enquanto eu penso no sol, o professor fala, fala, fala. Bocejo. Escuto. Bocejo. Paro de escutar. Encosto o queixo entre as mãos: o retrato típico do aluno entediado. Mas não... Eu quero prestar atenção sem que o rumo dos meus pensamentos oscilem. CAFÉ. Claro! Depois de tomar alguns goles de café, as palavras começam a fazer sentido. O final da aula chega rápido. Abraço a liberdade do intervalo de vinte minutos que mais parecem dois segundos. Indo para casa, penso: "sabe, o dia foi bom". Pensamento precipitado. O dia ainda não havia terminado. O pior estava por vir. E no dia seguinte pela tarde o pior do pior e pela noite o pior do pior do pior. Não me atrevo a perguntar o que de pior pode sobrevir. Os acontecimentos ruins não podem ser proporcionais aos bons, portanto, pare onde está, azar! Ou, talvez, Lara, seja menos desastrada, não seja tão você em tempo integral.

De repente e não mais...


   Lua cheia e estrelas. Pois em noites especias, esses dois elementos não se ausentam. Jovens sobre a grama verde salpicada pelo orvalho da noite. De repente, não mais que de repente, quase todos decidem fazer alguma coisa longe. Um casal permanece. Eles não percebem que os outros saíram. Quando conversam é como se os outros não existissem e no mundo só houvesse os dois. Ele pega a mão dela e diz que não imaginava que conversar com ela era tão bom e que estava feliz por estar onde estava naquela noite. Logo depois, percebem que estão sozinhos. E riem um pouco por nem ter visto todos saírem. Ele olha a lua. Ela olha para ele e ergue o olhar, uma estrela cadente corta o céu e um pedido ecoa recíproco em ambos os corações. Como se não estivesse óbvio o que estava acontecendo ela diz:
- Faz um pedido.
- Eu só gostaria que essa noite nunca mais acabasse, que esse momento fosse eterno.
- Digo que todo momento pode ser eterno se o guardarmos em nossos corações. - Diz ela olhando em seus  olhos.
   Hesitante, ele deposita as mãos sobre as dela e diz que seu coração já é de outrem.. Um celular toca, "I'm not saying it was your fault , although you could have done more. Oh you're so naive yet so" . Ela  faz menção de atender. Ele interrompe o gesto pela metade e diz baixinho:
- Vamos dançar?
   Em um movimento rápido ele está em pé com a mão estendida em convite. O celular para de tocar simplesmente emudecido pela beleza da cena. Eles dançam abraçados quase como um só. Aconchegados nos braços um do outro. Não havia necessidade de música, eles eram a melodia. A grama sob seus pés. As estrelas os vigiando. Lentamente a noite é selada com um beijo. Ele a abraça forte e eles permanecem ali, com os olhos fixos um no outro, realizando o desejo que feito à estrela cadente.

Bianca Cordazzo e Lara Quiche, em nome dos velhos tempos, de todas os nossos contos e poemas. 

Algumas palavras...

Graciliano Ramos soube explicar como ninguém um dos motivos pelos quais eu escrevo. Ele dizia, " uma experiência literária realizada, uma experiência humana superada." Nem sempre é assim. Mas, pelo sim, pelo não, eu continuo escrevendo, uma vírgula e até.

Uma noite de céu estrelado...

Os dias passam com a efemeridade de um suspiro de alívio. Dentre eles, um dia especial, cujo desfecho foi banhado pelo luar, pelo café e pelas nossas vozes desafinadas a cantar. A noite nunca é longa o suficiente quando se tem as companhias certas. A lua persiste no céu enquanto nossos pensamentos nela estiverem. E o sol cisma em não aparecer para nos manter mais tempo juntos. Os olhos fixos nas estrelas percebem um movimento inusual. Mirando a quebra da mobilidade estrelar, respiro a brisa da noite. Gravo a imagem e fecho os olhos. Sei que além, muito além, talvez haja esperança. Um pedido não consegue não ser feito. Um desejo egoísta, mas puro e inevitável. Quatro xícaras de café esquecidas no chão ao nosso redor. Duas ausências. Outra presença que se faz ausência: evade-se para o sono sob o concreto frio. E uma consciência confusa coexistindo no mesmo corpo onde um coração partido lamenta. A música certa para a pessoa errada. Os acordes soando, soando... Trazendo a cada som, a cada verso, um par de lágrimas sem... razão? Não. Sem razão não. Há, sim há. O que não há é a coragem para admitir que as lágrimas nunca são sem sentimento. Que por trás delas sempre há uma razão.

Uma prece...


Há tanto o que dizer, sempre há. Às vezes não há a quem. Às vezes não há voz. Mas quando os lábios calam, os dedos trabalham. Sagazes no teclar ou no ato de segurar o lápis. Então as palavras transverberam o sentimentos contidos, os pensamentos ocultos e tudo o que houver de excesso dentro de nós. Seja amor, seja ódio, seja angústia, seja alegria. Seja o que for. Basta haver algo para expressar. Só não pode não haver. Antes a hipérbole do sentir ao vazio do nada. Um salve ao exagero! Outro mais louvável ao desalinho! Uma prece improvisada à imaginação e à inspiração: Que das dificuldades surjam soluções entrevistas em mirabolantes inventos ou poemas de exuberantes. Que cresça e nunca pereça a curiosidade das mentes e as indagações frequentes. Que os olhos não se fatiguem de buscar no velho o novo e no novo o imutável. Que o bem alcance os corações. Que a sensibilidade triunfe. Que a prece jamais cesse de ecoar e o homem nunca deixe de amar. Amém!

A voz de Oz...

A tarde de verão seguia instável. Sol e chuva. Calor e frio. Conversas. Segredos. Sorrisos. E a pipoca de sal atribuindo sabor único àqueles momentos. A rede balançava ao sopro do vento litorâneo que ia folheando o livro ali esquecido. Era uma edição de capa amarela e ilustrada do Mágico de Oz. Ignoro a linguagem do vento. Mas creio que ele lia e sussurrava com suas palavras encantadas trechos do livro. Senti que sim. O ar parecia trazer aos meus ouvidos passagens que só meu coração entendia. Assim como as árvores e flores, abelhas e formigas, pássaros e mais pássaros ouviram o Leão clamando por coragem. O Espantalho por um cérebro. O Homem de Lata por um coração. E Dorothy repetindo eternamente que "não existe nenhum lugar como o nosso lar."

Mar e amar ao sol...

Renovador mesmo é acordar cedo. Levantar sem receio de viver, espantando imperiosamente qualquer preguiça remanescente do sonho desperto. Olhar o céu ainda sem sol e poder celebrar o término do baile das estrelas. Cinco e meia, mostra o relógio meio sonolento. Em uma bolsa, duas maçãs e algumas outras coisas. Seu pedalar rítmico alcança minha varanda. Chegamos à praia no tempo certo. Quando o céu sorri e o sol nasce. O mar envaidece por poder espelhar o magnífico espetáculo. Nós, com as palavras suspensas e os corações acelerados, deixamos o silêncio do olhar triunfar na sua contemplação.




À saudade sentida...

Cheguei há pouco tempo de viagem. Portanto, quase não tenho me dedicado a escrever aqui no blog. Ainda não consegui afastar por completo as saudades que senti da minha família, dos meus amigos e também uma pessoa muito especial. Aliás, a pessoa tem nome: João. Vários de meus textos, poemas e fragmentos desse verão foram inspirados na falta que ele fez. Essas saudades impiedosas extrapolaram a dimensão limítrofe do sentir. Encontraram brechas em nossos pensamentos e exigiram uma expressão concreta através de um lápis a riscar palavras no papel. Eis algumas dessas belas palavras...

Soneto à Lara

- Lara, moça tão rara
És minha menina, Carolina
E mesmo estando longe um do outro, Peixoto
Sei que o amor persiste, Quiche

- João, moço cheio de presunção
Deixasse teu amor cristalino, Delfino
E que de saudades morres, Torres
Pois não sabes que a saudade me fere também, meu bem?

- Lara, saudade é dor que não sara
És dela conhecida preferida
E já que saudade é tua sina, Ipamerina
Estou aqui te esperando, sonhando

- João, já desci do avião
Estou longe de lá e Olá!
E mesmo estando perto, despertos
Fico com parte do coração distante, uivante

- Mas não se sinta sozinha, Pessoinha
Enquanto eu estiver ao teu lado
Em um abraço apertado

- Mas, moço, como somos enrolados, apegados
Penso em você toda minha vida
Ou melhor, só nas horas repetidas

-Mas então, me diga, querida
Se estas a mim tão apegada
Lara, quer ser minha namorada?

Não resta dúvida de que minha resposta outra não foi senão um eloquente SIM!

Nós com Nós


Nós fracos e fortes
Unidos, enlaçados
Ora desfeitos
Ora refeitos
Ora, digo eu
Nodoso é o amor
Cheio de nós:
Nós dois.


Viajante



Sou um viajante
Vejo bem cedo o sol radiante
Brilhando sempre pedante
Sobre esta estrada maçante
Dando vôo rasante 
Na minha imaginação

Neste vagar constante 
Busco encontrar logo adiante
Este meu amor tão distante
Pelo qual meu coração pulsa uivante.
Como sol abrasante
Ilumina meu amor
E dizer como nunca antes
Que meu amor por ti é gigante
Sua beleza é mais um agravante
Pois meu amor é incessante
Não para um instante 
De amar você.

João Delfino Torres




Lua Bonita - Zé do Norte

Lua bonita, se tu não fosses casada, eu preparava uma escada pra ir no céu te buscar.
Se tu colasse teu frio com meu calor, eu pedia ao nosso senhor pra contigo me casar.

Lua bonita, me faz aborrecimento ver São Jorge no jumento pisando no teu clarão.
Pra que cassaste com um homem tão sisudo que come, dorme, faz tudo, dentro do seu coração?
Lua Bonita, meu São Jorge é teu senhor.
É por isso que ele "véve" pisando teu esplendor.

Lua Bonita, se tu ouvisses meus conselhos...
Vai ouvir pois sou alheio, quem te fala é meu amor:
Deixa São Jorge no seu jubaio amuntado.
E vem cá para o meu lado pra gente viver sem dor.


Ao verme que primeiro roeu as frias carnes de Brás Cubas...


    Confesso que li Memórias Póstumas obrigada pelas circunstâncias. Estava participando de um curso de literatura e cinema e a cada semana era necessário ler um livro diferente, até que chegou a vez de Memórias Póstumas e não tive como protelar mais. O livro foi lido em duas tardes. A dedicatória incomum me surpreendeu logo de início. O narrador já começa o livro anunciando sua condição de defunto autor, que a partir da morte vai narrar sua vida. Livre da opinião de terceiros e das máscaras e falsidades utilizadas em vida para manter as aparências e a boa convivência, Brás Cubas não hesita em contar sua história sem eufemismos ou hipocrisias. É o desabafo honesto de um homem comum, até mesmo medíocre, com seu primeiro amor, ilusões, tristezas e erros. Muitas passagens memoráveis me fizeram rir durante um bom tempo, afinal, como esquecer as lamentações de Cubas: " Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?", ou então Quincas Borba e o humanitismo ou, ainda, a famosa ideia fixa do emplastro Brás Cubas contra a melancolia?  
    O filme "Memórias Póstumas" cumpriu seu papel, conseguindo ficar à altura do livro. O padrão da história, contada em primeira pessoa por Brás Cubas, foi mantido. À medida que ele narrava os fatos, sua imagem congelava e os acontecimentos iam se sucedendo. Reginaldo Farias interpretou perfeitamente o defunto Cubas. A ironia bem-humorada do filme ficou na medida certa. A fotografia, belíssima e a trilha sonora também.  

A Árvore da Vida - Terrence Malick


foto de A Árvore da Vida

   Ainda não sei ao certo se entendi o filme completamente. Caso precisasse descrevê-lo com apenas uma palavra, seria mistério. Terrence Malick já mostrava traços marcantes de sua personalidade como cineasta em "Terra de Ninguém". Em "A Árvore da Vida", ele pôde expandir sua estética e percepção, abordando a vida e a morte. A fotografia do filme lembra a natureza vívida e verde do verão e da primavera. Senti algumas cenas meio descontextualizadas e perdidas no decorrer do filme, contudo, como já disse, é um filme para ver visto e revisto. A história divide-se entre a visão da mãe e do pai sobre a perda do filho e a visão do irmão mais velho.
   Uma das partes mais ousadas é a que a mãe conversa com Deus e procura imaginar onde estará seu filho. Durante esse monólogo são mostradas cenas impactantes, às vezes até mesmo incompreensíveis, da natureza. O pai, o senhor O'Brian, no caso Brad Pitt, denota sentir remorso por suas atitudes em relação ao filho falecido. Porém inicialmente não nos é possível entender o porquê. De repente, o rumo da história se desvia para o irmão mais velho, Jack, interpretado por Sean Penn. Encontramos ele já adulto, estabilizado e, no entanto, infeliz. Em um pico de lucidez, ele constata: " O mundo foi entregue aos cães. As pessoas são gananciosas e ficam cada vez piores." A impressão passada pelas primeiras cenas em que Jack aparece é de confusão e opacidade, como se algo estivesse fora do lugar.
   Em seguida, há um flashback. Então o filme de fato começa. Acompanhamos o nascimento dos três filhos do casal O'Brian, os primeiros passos e as primeiras palavras. Malick começou a contar sua história tendo em vista a morte para depois mostrar o surgimento da vida. É interessante observar a forma como as pessoas encaram esse dois acontecimentos. 
   Aos poucos, é revelado o caráter do pai. Aliás, confesso que Brad Pitt conseguiu me surpreender e apagar absolutamente meu preconceito. Ele dá vida a um pai de família autoritário, opressivo e frustrado, que não conseguiu realizar seu sonho de ser um pianista e deseja ver seus filhos "vencerem na vida" (seja lá o que isso quer dizer). Os filhos vivem presos a formalidades inacreditáveis, não conseguindo sequer se afeiçoar ao pai. Jack, o mais velho, é o mais revoltado de todos. A mãe, ao contrário, representa toda a leveza da família. A atriz que representa a senhora O'Brian, chama-se Jessica Chastain. Eu não conhecia nenhum de seus trabalhos anteriores, todavia, fiquei encantada pela sua atuação.
   Quando o pai perde o emprego, a família é forçada a se mudar. Com essa perda, o pai reavalia suas atitudes. Coloca tudo em uma balança e percebe que seu único bem é a sua família. Nesse momento, a história se torna muito mais subjetiva do que até então. O foco volta para o presente, para a visão do irmão mais velho. Prefiro omitir detalhes sobre o final, uma vez que eu mesma não soube muito bem como interpretá-lo. Na minha opinião, o filme é a estrada percorrida pela família para tentar entender a morte. Por isso as lembranças, o começo da vida retorna para que se possa compreender melhor o fim. E o final do filme, para mim, foi a paz da compreensão do pai, da mãe e dos filhos sobre o mistério da vida e da morte. 
   Esse filme exige paciência e atenção. Não é um filme fácil de ser assistido, portanto há quem o odeie e quem o ame. Ele foi indicado ao óscar em três categorias: melhor filme, melhor direção e melhor fotografia. Conhecendo os padrões atuais dessa premiação, duvido que ele vença nas duas primeiras alternativas citadas, contudo, acho que o óscar de melhor fotografia é mais do que merecido. É obrigatório. 



O amor...

... no varal.
Que o sol a tudo vença.
Que seque todo o mal.
Que entre nós não haja desavença. 
Que se faça ausente o temporal. 
Somente a tua e a minha presença. 
Brincando tal sabiás no varal.





A Escrava Isaura - Bernardo Guimarães

  Este livro, escrito em 1875 por Bernardo Guimarães, representa uma audaciosa crítica à escravidão. Em uma única história são vislumbrados vários aspectos dessa condição. A ausência de liberdade creio que é o pior. Dói pensar que já vivemos uma época em que isso fosse possível. Além disso, o preconceito pungente e desumano alimentado por uma sociedade cega. Os abusos incontáveis sofridos e tantas outras consequências desse rótulo de "ser escravo". Apesar de realista no que tange à escravidão, o livro de Bernardo Guimarães faz parte do movimento literário denominado romantismo. As descrições das paisagens e personagens feitas pelo autor possuem uma profusão de adjetivos e são muito poéticas. Li esse livro com um dicionário ao meu lado. Aparecem grifadas incontáveis palavras ao longo das páginas. Não resta dúvidas de que ler "A Escrava Isaura" enriqueceu muitíssimo meu vocabulário. Mais um motivo para ler os clássicos da literatura brasileira, deixando de lado os preconceitos. 
   A história, ambientada no início do reinado de D. Pedro II, narra as desventuras e venturas de Isaura. Filha de uma bela escrava e de Miguel, um bondoso feitor português, Isaura perdeu a mãe quando ainda contava com tenra idade. A esposa do dono da fazenda à margem do rio Paraíba, onde ela nascera, lhe proporcionou primorosa educação. Isaura cresceu cercada de carinho, porém sob a sombra da escravidão. Antes de morrer, a velha senhora expressou ao marido, ao seu único filho, Leôncio, e a sua nora, Malvina, o desejo de que, com a sua morte, Isaura fosse liberta. Logo que faleceu a senhora, o filho e o marido esqueceram-se completamente da promessa feita. Leôncio hesitava pois tinha, em seu íntimo, vis intenções relacionadas à jovem. Ela resistiu bravamente às investidas do rude conquistador, atiçando seu ódio. Com o ímpeto de se vingar, Leôncio sujeitou Isaura ao árduo trabalho de tecer lã e algodão exposta a condições precárias. Mesmo assim, ela não cedeu ao orgulho ferido de Leôncio. 
   Depois de tentar, em vão, comprar a liberdade de Isaura, seu pai decide tomar uma providência mais séria. Os dois fogem juntos para o Recife. Lá instalam-se em uma pequena chácara usando os codinomes de "Elvira" e "Anselmo". Leôncio despende todas os recursos possíveis para encontrar Isaura. Receosa de ser reconhecida, ela evita ir a festas. Contudo, devido a insistência  de seu pai, ela aceita comparecer a um baile. Não demora para que seus dotes e encantos sejam percebidos. Álvaro, que se apaixonara perdidamente por Isaura, declara seu amor durante o baile. Nesse contexto, desenvolve-se o clímax final do livro: a pequena é reconhecida por um dos presentes. 
"- É assombroso! Quem diria que debaixo daquela figura de anjo estaria oculta uma escrava fugida!
- E também quem nos diz que no corpo da escrava não se acha asilada uma alma de anjo?"
Álvaro não abandona Isaura no momento em que fica sabendo a verdade sobre sua origem. Contudo, Leôncio estava disposto a ir além de qualquer limite para satisfazer sua maior vaidade: ter de volta Isaura. Avisado do paradeiro da escrava, ele vai ao Recife. Sob protestos e súplicas, ela é levada de volta. 
Por fim, Leôncio concorda em lhe conceder a liberdade contanto que case com um ignominioso trabalhador da fazenda, chamado Belchior. É armada uma farsa para fazer com que Isaura pense que Álvaro se casara. Com as esperanças despedaçadas, ela aceita, resignada, o casamento.
   Enquanto esses acontecimentos se passavam, Álvaro buscava incansavelmente uma solução a para o infortúnio de sua amada. Até descobrir as dívidas exorbitantes de Leôncio. Álvaro então partiu em busca dos credores e quitou as dívidas, tornando-se dono da fazenda e de todos os seus escravos. Não podendo suportar esse golpe, Leôncio, o carrasco da história, suicidou-se com um tiro na cabeça.
   Como todo o romance de verdade, este também tem um final feliz para quem penou no decorrer da história: Isaura. Ela terminou com um apaixonado pedido de casamento de Álvaro e um belo futuro à frente.
     "É vã e ridícula toda a distinção que provém do nascimento e da riqueza."



O Pagamento Final - Brian De Palma


Considerado por muitos como a obra-prima de Brian De Palma, O Pagamento Final agrupa todos os elementos para ser considerado um dos melhores dentre os melhores de seu gênero. Primeiro, o elenco intocável, do qual faz parte Al Pacino, o protagonista Carlito Brigante, Sean Penn, como David Kleinfeld, seu advogado subvertido e ambíguo, entre outros. Segundo, a forma de narrativa escolhida. Contada em primeira pessoa, desde o início temos conhecimento do final trágico de Carlito. Prestes a morrer, ele narra sua história a partir do momento em que foi solto da prisão, onde passou cinco anos por tráfico de heroína. Logo na audiência de absolvição, ele deixa clara a decisão de não mais se envolver com nada ilegal. Não obstante, no momento em que se vê livre, passa a ser vítima de circunstâncias desfavoráveis.
Ao realizar uma visita ao bairro porto-riquenho no qual crescera, participa de um assassinato múltiplo de um chefão do tráfico e seus comparsas. Nesse incidente, angaria uma quantia que utiliza para se tornar sócio na boate de seu advogado, David. Carlito resolve trabalhar honestamente a fim de conseguir o que lhe falta para investir no ramo automobilístico e ter uma vida tranqüila nas Bahamas. Contudo, seu gênio e suas companhias o precipitam vertiginosamente à autodestruição. Por orgulho, ofende e desentende-se com o seu substituto no ramo do tráfico de heroína, Benny Blanco. A discussão termina com juras de morte. Porém em um breve momento de hesitação, Carlito decide deixá-lo vivo.
Assim que se estabelece na boate, Carlito reencontra e reconquista sua antiga namorada, Gail.  Os dois planejam sonhadoramente um futuro distante de toda a sujeira que os cerca.  No entanto, os acontecimentos consecutivos somente os afastam de seu objetivo. David, sob ameaças de um de seus clientes mafiosos, é obrigado auxiliar em sua fuga. Carlito toma parte no resgate por se sentir em débito com David. Nada acontece como o planejado, David perde o controle e acaba assassinando o cliente e seu filho, comprando para si mesmo e Carlito uma briga com os demais mafiosos. Começa então o clímax instigante e angustiante criado por Brian De Palma. Ficamos absolutamente absortos pelo desenlace fatal da história.
Nesse clima de incerteza, Gail informa a Carlito que está grávida. Os dois são abordados na rua por alguns policiais e intimados a acompanhá-los. Eles mostram uma gravação que evidencia o intuito de David de trair Carlito. Diante disso, os policiais exigem que ele confesse a participação de David na morte do mafioso e de seu filho. Fazendo-se de desentendido, Carlito nada revela. Decide, porém, tirar a limpo a história com David, que se encontra hospitalizado após sofrer uma tentativa de assassinato.  Logo que constata a veracidade dos fatos, Carlito antecipa a partida com Gail para as Bahamas. O casal combina de se encontrar na estação de trem. Carlito vai à boate pegar suas economias. Lá encontra, à sua espera, alguns antigos conhecidos da máfia. Prevendo uma possível vingança por parte deles devido ao assassinato do mafioso, Carlito não perde tempo: foge. Inicia-se uma perseguição aflitiva. Nós, telespectadores, sentimos cada emoção do fugitivo, tememos cada passo em falso, sofremos com ele. Por fim, na estação, quando consegue se livrar de todos os mafiosos que estavam ao seu encalço, avista Gail e seu segurança, Pachanga, à porta do trem. Carlito esquece tudo, e corre em direção a Gail. Esse é o seu erro, no último momento, ele se descuida. A jura de vingança se consuma pelo tiro terminante despendido por Benny Blanco. O inimigo vivo, a morte certa. 


Cem Anos de Solidão - Gabriel García Márquez

  Este é um livro do qual você nunca esquece e sempre sente saudade. Pelo menos comigo é assim. Estamos no começo de 2012. Há exatamente um ano, eu o li. E, ah, daria tudo para tê-lo em mãos agora. García Márquez consegue como ninguém contar uma inesquecível história. Merecido ganhador do Prêmio Nobel de 1982, Cem Anos de Solidão é um dos melhores livros de todos os tempos.
   Gabo nos conduz a um passeio por cem anos da família Buendía. A história cria vida na cidade de Macondo, a qual acaba tomando os moldes de um personagem. Desenvolve-se, cresce, muda, envelhece, assim com Úrsula, a mãe, José Arcadio, o patriarca e também os filhos, netos e bisnetos. Várias gerações descendentes da mesma solidão.
   Acompanhamos o início da loucura sonhadora de José Arcadio e seu paulatino distanciamento. A responsabilidade de Úrsula por toda a parte prática da vida familiar. A criação dos filhos, os afazeres domésticos e as preocupações. Desde a primeira página do livro sua força é evidenciada. A partir dos três filhos do casal, José Arcadio, Aureliano e Amaranta, a família se expande. Personagens periféricos, como Pilar Ternera, Melquíades e Rebeca não perdem em encanto e mistérios para os demais. Pilar Ternera, responsável por introduzir o jovem José Arcadio nos segredos da paixão. Melquíades, o cigano, cuja influência foi terminante para José Arcadio Buendía pai. E a pequena Rebeca, vinda de um longínquo povoado com os restos de sua mãe morta em um saco e uma carta para José Arcadio. A voz de Úrsula faz-se ouvir durante todo o livro. As reflexões mais sábias são suas. Ela vê as histórias se repetindo como em um ciclo. Os José Arcadio's cometendo erros semelhantes. Os Aureliano's filhos do Coronel Aureliano perdidos mundo a fora. Enfim, um leque de personagens interessantíssimos que se revezam ao longo dos cem anos, mantendo viva a família Buendía.
  Certa vez, li na contracapa de algum livro de García Márquez que o que mais inspirara sua obra viera das histórias que ouvira na pequena cidade de sua infância. Creio que todos nós temos nossa Macondo. E que todas as famílias, caso observadas atentamente, constatariam sua inelutável solidão.
  Cem Anos de Solidão é o retrato universal da família. A família como um corpo, no qual cada membro é insubstituível e único.

Recomendo!

O REGRESSO...

Ontem lembrei desse blog. Até hoje não consegui desenvolver o hábito de escrever diariamente aqui. Minha última postagem foi feita há mais de um ano! Ando às voltas com um problema e acho que talvez a solução esteja aqui. Encontro certa dificuldade em fazer o que preciso, aliás, o que devo fazer. Creio que metas seriam úteis. Portanto, a partir de hoje, escreverei uma resenha literária e uma resenha cinematográfica por dia. Que tal? É um belo desafio para 2012...