Apego...

Sabia. Antes sabiá, mas não: era o verbo saber. No fundo ela negava essa consciência incômoda da realidade. Quiçá com eles fosse diferente. Afinal, em muitos outros aspectos eles diferiam dos demais. No entanto, e se fossem iguais? Rechaçava a ideia com um menear convulso de cabeça e cabelos. Estava tudo tão bem, por que pensar nisso? Talvez justamente por isso, por estarem bem. Doía imaginar-se sem ele. Não há fuga, são incansáveis as indagações sobre o cantado e louvado "para sempre". E é tudo tão provisório. As coisas, as pessoas e ainda mais os sentimentos. O apego, porém, não sabe como interpretar o fim ao se deparar com um. Nessas encruzilhadas sentimentais, Vinícius simplesmente sabe e salva.
Sobre o amor, dizia ele em um de seus mais belos sonetos: 
"Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure."

Henry Miller e o Tempo...


"Bóris acaba de oferecer-me uma síntese de suas ideias. É um profeta meteorológico. O tempo continuará ruim diz ele. Haverá mais calamidades, mais morte, mais desespero. Não há a menor indicação de mudança em parte alguma. O câncer do tempo está-nos comendo. Nossos heróis mataram-se ou estão se matando. O herói, então, não é o Tempo mas a Ausência de Tempo. Precisamos acertar o passo, em ritmo acelerado, em direção à prisão da morte. O tempo não vai mudar."


Diálogo...

    A conversa era um tête-à-tête noturno entre amigos. Os assuntos transitavam do dia de um para o dia do outro. Ia de questões metafísicas como o amor e a saudade aos vícios e acontecimentos triviais. No final do dia, resta um sabor granuloso na boca, um estremecimento nas mãos. Algo em nós que precisa expressar a essência do que aconteceu. Alguns escrevem diários, outros falam e escutam.
    Naquele dia, em especial, ele se atrasara. Quando chegou, o amigo já estava lá. Sentado com a postura ereta, testa franzida e o olhar perdido. Mantinha as mãos pousadas sobre as pernas segurando o chapéu. Aproximou-se do amigo com um cumprimento cordial. Mal havia se acomodado, duas canecas fumegantes de café foram trazidas.
- Ora, já pediu?
- O de sempre, como sempre. - respondeu abrindo um sorriso o companheiro que até então permanecera sério.
- Como foi seu dia?
- Surpreendentemente bom para um sexta-feira 13.
- Como se você fosse muito superticioso... - retrucou tirando um cigarro do bolso e acendendo-o rapidamente.
   O sinal de que a conversa de fato começava era a fumaça lúgubre do cigarro pairando sobre eles, lembrando Humphrey Bogart e dando à cena o elemento que faltava para completar o noir da noite. Após alguns instantes pensativo, o amigo do chapéu falou:
- A vi ontem. Ela parou de fumar, arrumou um namorado... Continua a mesma pequena de atos audaciosos, língua afiada e, ao mesmo tempo, jeito meigo. - concluiu com o suspiro que só conhece quem já amou.
- E isso significa que você continua...
- Não - interrompeu o amigo do chapéu antes que o amigo do cigarro terminasse a frase. Não - continuou - não sinto o que presumi que sentia..
- Amigos?
- Grandes Amigos. Mas e seu dia? Como foi?
- Teve sua parcela de alegria e sua parcela de angústia, como todos os dias tem - disse inquieto o amigo do cigarro batendo ritmicamente os dedos na mesa de madeira antiga.
- E qual foi a parcela boa?
- Vi a minha pequena pessoa.
- A ruim?
- Talvez ela não seja tão minha assim...
- Ciúmes? - indagou pousando o chapéu sobre a cadeira ao lado e analisando a expressão conhecida do amigo.
- Sim... Ela parece distante, como se não sentisse tanto quanto eu. E eu sei que sou egoísta e possessivo.
- Grande coisa, todo o ser humano é.. Talvez ela simplesmente não saiba demonstrar, mas você sabe que ela sente. Eu sei que você sabe.
   Terminou o cigarro, depositou-o sobre o cinzeiro de metal e acendeu o segundo da noite.
- Preciso aprender a moldar meus sentimentos... Você liberta, eu prendo.
- Você não prende com os ciúmes. Apenas sente-se inseguro por achar que ela se importa mais com outras pessoas do que com você.
- Você liberta, não adianta... Eu prendo sem querer. Prendo querendo libertar.
   Ao conversar, eles aconselhavam-se a si mesmos aconselhando um ao outro. O amigo nada mais é do que o nosso eu projetado. Ou seja, o diálogo era de eu para eu.
- Mas, sabe... - começou pausadamente o amigo do chapéu - quando as pessoas estão próximas, nenhum artifício se faz necessário para prendê-las. No entanto, quando elas estão longe, utilizo uma corda, a qual denomino saudade. Ela é amarrada nos corações daqueles com quem tenho alguma ligação. À medida que as pessoas se afastam, a corda vai se esticando e mais vai apertando. Dói. A dor mostra que há sentimento pela pessoa: os laços se fortalecem.  Mesmo que as pessoas não estejam perto, a corda não prende, apenas mantem o elo.
   Após ouvir as palavras do amigo do chapéu, o amigo do cigarro ergueu-se. Desfez-se do cigarro, desanuviou o olhar. Fitou o amigo e disse:
- Talvez eu tenha compreendido o ciúme agora.. Nada é além de uma saudade incontida de quem está ao nosso lado. Um protesto às vezes silente, às vezes gritante, de qualquer forma, um protesto por mais atenção.
  Ao terminar de pronunciar essas palavras, precipitou-se em direção à porta
- Adeus, preciso encontrá-la... Já não é ciúme o que sinto. E não posso guardar esse sentimento.
   Ensaiou um adeus. O amigo respondeu com um aceno de cabeça. Logo que fechou a porta atrás de si, soaram as doze badaladas do sino da igreja. Era meia noite. Um novo dia começava.

Cotidiano...

   Ela remexia minuciosamente cada compartimento de sua bolsa. Tirava um bloco de notas e uma caneta, colocava de volta. Erguia a carteira espreitando os cantinhos mais escondidos, achava cacarecos há muito perdidos e esquecidos. Mas o que ela procurava, definitivamente não estava ali. O rapaz ao seu lado observava calado a cena cotidiana. Era sempre assim. Ela era assim. Paciente, como quem vê pela milésima vez o mesmo filme, ele aguardava o final conhecido. Enfim, já conformada com mais uma perda, ela cessou a procura.Olhou pensativa o semblante penalizado e ao mesmo tempo divertido do rapaz.
- Você perde tudo! - exclamou ele. 
- Eu sei - disse ela meneando a cabeça para trás enquanto avaliava a dimensão de todas as suas perdas. 
- Essa sua habilidade de perder as coisas...
- Se ao menos fossem só coisas. Eu perco chaveiros e chaves. Perco no xadrez e nas damas. Perco o horário e o ônibus. Perco uma piada e um sorriso. Cidade pequena ou grande, me perco nas duas. E o pior: perco pessoas. Ou elas se perdem de mim...
   Sua voz foi aos poucos silenciando. Sem saber ao certo o que responder, o rapaz se calou. O silêncio entre ambos. A perda das palavras. Talvez a consciência das perdas pesando sobre eles. Na perda, um ganho: estridente, uma voz soou ao longe. Já não era mais silêncio.
- Moça! Ei! Espera... - foi dizendo apressada a dona da voz. - Ó, acho que isso é seu. - concluiu entregando um antigo relógio de bolso. O mesmo objeto há pouco procurado, considerado perdido e, em um desenlace inesperado, reavido.
- Ah, obrigada! - respondeu atônita, observando alegre o pequeno relógio entre seus dedos. As iniciais do avô gravadas em ouro continuavam ali, como há 30 anos. 
- Viu? Você perde tudo, isso é inegável. Mas o perdido sempre ou quase sempre, ou melhor, sempre que verdadeiramente seu, volta pra você. - disse sabiamente o rapaz.
De fato, a sina da moça era perder. Seu destino era reencontrar.