Leminski e Jeneci

O dia, definitivamente, não estava sendo dos mais fáceis. A semana, na verdade. O mês talvez. O ano que sequer começara. Com lágrimas abundantes escorregando pelas bochechas redondinhas e ruborizadas de tanto chorar, ela repetia para si mesma um poema do Leminski. Repetia como um mantra. Repetia como se quisesse tornar-se aquele poema, como se quisesse ser parte da música que adentrava-lhe a alma pelos fones de ouvido. Deveria estar entrando na sala de aula para assistir ao professor falar durante duas horas sobre biofísica. Deveria. Ela nunca matava aula, nem quando estava com febre, nem quando o mundo desabava do lado de fora. Mas hoje era diferente, não era uma dor física, não era o mundo que desabava lá fora. Era o seu mundo que desabava dentro dela. Incenso fosse música, era o poema. Felicidade, era a música. E era tudo o que ela queria naquele momento. Que ela fosse incenso e fosse música e fosse felicidade. Mas como ser? Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além isso que de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além felicidade é só questão de ser. Ser. Ela já não sabia mais quem era. No ir e vir de tantas aulas e estudos, fórmulas, equações, correntes oceânicas, revolução industrial, guerra fria, ela esquecera de pensar em si. Esquecera-se. Agora lembrava. Lembrava que amava poesia e música. Lembrava que amava cinema e escrever. Com esforço, ainda entrevia-se e sabia que poderia recuperar-se e recuperar a si mesma. Mas para isso, não poderia sucumbir, teria de lutar. Lutar para ser exatamente aquilo que a gente é. Para ir além. Pois tem vezes que as coisas pesam mais do que a gente acha que possa aguentar, nessas horas fique firme, pois tudo isso logo vai passar. 

Plantão 1

Parecia um dia de domingo tranquilo, sem grandes acontecimentos. Aquele seria o seu primeiro plantão. Ela chegara mais cedo e ficara aguardando o veterano que iria lhe guiar. Logo ele chegou, dirigiram-se para a emergência: não havia nada. Algumas pessoas nos leitos dos quartos e cadeiras vazias. Nada do médico do plantão que acompanhariam. Aguardaram na sala por alguns momentos até que decidiram colocar o jaleco e partir em busca de algo. Encontraram, deitado em uma maca no corredor, um senhor que havia sofrido uma queda e que apresentava sinais de que bebera. Tentaram comunicar-se com ele, mas em vão. O máximo que descobriram foi que lhe doía a cabeça. Visitaram alguns leitos, perambularam. Tentaram falar com um médico porém ele era clínico. Onde estaria o cirurgião? Ao voltarem para o senhor que caíra, viram que havia um homem falando com ele. Dr. Germano: provavelmente mil anos e outras mil grosserias. 
O que ela esperava?
Explicações calmas, não ter medo de errar, sentir-se à vontade para perguntar e não ter vergonha de não saber nada ou quase nada, visto que tinha menos de dois meses de medicina na bagagem.
O que ela encontrou?
Um médico que respondia a perguntas de forma rude e irônica, que fez ela se sentir menos que um nada e que não aparentava ter um pingo de humanidade. "Ele nascera sabendo, será?" Porque qualquer um que já fora jovem e inexperiente uma vez na vida teria a alteridade de ser prestativo e oferecer conforto. 
Depois de muitos golpes que projetaram sua dignidade para quilômetros de distância, depois de respirar fundo inúmeras vezes e depois de segurar o choro outras tantas, ela foi entendendo melhor como tudo funcionava ou como não funcionava ou como funcionava diferentemente da maneira como realmente deveria funcionar. Conheceu Maria Ângela e sua ponte engolida, Mariana e o corte na testa, senhor V. e a mordida de cachorro, Deivid e o corte de serra elétrica, o senhor José Maria e a cabeça que doía, o bebê Lorenzo que havia feito o que ela inúmeras vezes fizera quando criança: batera a cabeça, levando a família à loucura e, por fim, conheceu William, rapaz de 19 anos de idade que tinha em seu pé direito uma bala de projétil. Foram muitos pacientes e, por trás de cada um deles e de suas feridas, uma história, uma preocupação na cabeça, alguém à espera de uma informação ou então ninguém para compartilhar o sofrimento. 
Diante de tudo isso, o único pensamento que lhe ocorria era que cada uma daquelas pessoas merecia ter recebido um tratamento melhor, um tratamento mais humano, um olhar, um aperto de mão, um sorriso, um "vai ficar tudo bem" ou então um "você precisa se cuidar melhor", "você tem como comprar o remédio?", "você sabe o que fazer, como proceder?", um tratamento mais digno. Em meio a essa efusão de pensamentos, ouviu uma enfermeira comentar com o médico: "Esses dois são novinhos, não é?" Ao que o médico respondeu: "São sim, primeiro e segundo ano." "A gente percebe mesmo, quando eles querem ajudar todo mundo, esses não perderam a humanidade ainda." Ainda. Ainda? Aquilo ecoou profundamente atingindo o âmago de tudo o que ela acreditava e era. Como assim ainda? A jovem e o veterano trocaram olhares tristes e assustados "Será que isso vai acontecer com a gente?" ele perguntou para ela. "Não." Respondeu firmemente. E jurou para si mesma:
"Não, eu nunca chegarei ao ponto de ver um machucado no dedo do pé de uma pessoa como algo desimportante e que pode esperar 3h até receber atendimento. Não, eu não deixarei de olhar para as pessoas e de enxergar nelas um mundo inteiro de sentimentos, esperanças e medos que merecem toda a minha atenção e paciência. Não, eu não deixarei de ser humana e de dar àquele que depende do meu atendimento, o melhor de mim, todo o meu conhecimento, meu mais sincero bom dia, boa tarde, boa noite, qual é o seu nome, o que houve com você, um sorriso e um olhar sincero."


Sei que foi apenas um plantão e sei que existe um mundo de decepções pela frente, mas espero que toda vez que eu estiver prestes a deixar a peteca cair, eu possa voltar a esse texto e me lembrar de quem eu sou, do que eu acredito, respirar fundo e seguir.