sentido

quando último romance dos hermanos faz todo o sentido do mundo e você não vê a hora de ver aquela pessoa para dar um beijo, um abraço, fazer panquecas e tomar um chá...é amor.

i'll be the sun, you'll be the shining

https://www.youtube.com/watch?v=Sj0Ha7Xkw7Y

"While I was feeling such a mess, I thought you'd leave me behind

 While I was being such a wreck, I thought you'd treat me unkind
 But you helped me change my mind..." 


A noite era de vendaval, tudo se movia: festival de ar revolto levando consigo folhas, areia e nuvens. O frio que fazia do lado de fora contrastava com o calor ameno que aquecia o seu coração. Fazia tempo que não lhe ocorria escrever sobre o amor. Fazia algum tempo que não o sentia tão sereno e puro dentro de si. Ele era aquela calmaria que lhe acalentava em meio àquele vendaval, era o consolo ao acordar cedinho com alguém ao lado para abraçar, era o café quentinho pela manhã acompanhado de um beijo, era a paz de um chá depois do almoço, era a separação breve sabendo-se pensamento constante de outrem, era a tranquilidade de cair e ter uma mão para puxar de volta e um ombro para se doer, era o sentimento de pode ser quem se é, era a alegria de compartilhar a vida, cada tantinho mais efêmero, era, é e sempre será. 

"A vida às vezes podia raiar em uma felicidade extraordinária." G.R.

sobre tudo estar bem

queria respirar fundo
olhar ao redor
e sentir
simples e serenamente
que tudo estava bem
não sentir o aperto no peito
a sensação de que tudo desmoronaria
a decepção consigo mesma
queria encontrar a paz
como naquela canção de rap
independente do tempo, da chuva ou do sol
queria
queria?
mas queria era pretérito imperfeito
segundo a definição que ela se lembrava:
aquilo que não foi concluído
a conjugação correta deve ser
quer
ela quer
presente

peteca

O problema é sempre o mesmo, a questão é sempre a mesma. E eu sigo sendo a mesma, jogando peteca com a culpa: jogando ela para o céu do momento em que eu nasci. Tem culpa no sol em gêmeos, na lua em libra e, como em um jogo de ligar os pontos, o ponto final da constelação do caos de Lara termina com vênus em câncer. O que formam esses pontos ligados? Ainda resta dúvida? Quem olhasse para o céu no dia 14 de Junho de 1997 veria um majestoso ponto de interrogação. Eis-me. 



nota para não esquecer jamais

"Penso como Antonin Artaud: 
há dez mil modos de ocupar-se da vida e de pertencer à sua época;
há dez mil modos de pertencer à vida e de lutar pela sua época."
Nise da Silveira

sistema cardiovascular

Aula de fisiologia.
Tema: sistema cardiovascular.
Mas como entender os átrios, ventrículos, as válvulas e todos os outros mil e um pormenores quando, no mediastino médio do meu corpo, as diástoles e sístoles se confundem, desencontradas, fibrilando?
Adeus às junções GAP de um coração que já não sabe mais como bater.


guardanapo

um guardanapo sujo de batom vermelho
com mil promessas que juramos cumprir
mil sentimentos que queríamos sentir
metas para um novo ano
mal sabíamos o que nos esperava
nunca imaginamos que seria assim
entrava ano, passava ano
outras pessoas entravam
outras pessoas passavam
mas nós
nós seguíamos caminhando juntos
até que
bem
isso mudou
em nosso guardanapo
planejamos várias mudanças
queríamos um ano novo
com mais tempo parar viver, cozinhar e comer morangos
planejamos plantar uma árvore
e viajar em julho
estar felizes
estar exatamente onde gostaríamos de estar
mas os planos não seguem nosso coração
seguem a vida
a vida mudou
o tempo escasseou
não teve muito viver
não teve morango
teve briga
teve "eu te odeio"
onde antes
existia "eu te amo"
a árvore?
ainda é semente
julho?
ainda não chegou
mas acho que será só frio
sem viagem
a  vida mudou
queríamos que mudasse
só não mudou
c o m o queríamos que mudasse
restou o guardanapo
como registro:
caneta preta
e
batom vermelho
de uma noite feliz
onde tudo era esperança
do que nunca seríamos:
nem árvore nem morango
somos promessas quebradas.

i wish it were simple

The fire fades away
But most of everyday
Is full of tired excuses
But it's too hard to say
I wish it were simple
But we give up easily
You're close enough to see that
You're... the other side of the world

Can you help me?
Can you let me go
And can you still love me
When you can't see me anymore?

gota

a gente vive sempre querendo algo que nos complete, preencha, inunde, transborde
mas, às vezes, sós
e, em noites vazias porém profundas, parece que, de um oceano, temos sequer ínfima gota
que nos tape o fundo da alma
que nos mate a sede de vida
lá pelas tantas
às vezes
brota lágrima
e só

linger

oh, I thought the world of you
I thought nothing could go wrong
but I was wrong

Leminski e Jeneci

O dia, definitivamente, não estava sendo dos mais fáceis. A semana, na verdade. O mês talvez. O ano que sequer começara. Com lágrimas abundantes escorregando pelas bochechas redondinhas e ruborizadas de tanto chorar, ela repetia para si mesma um poema do Leminski. Repetia como um mantra. Repetia como se quisesse tornar-se aquele poema, como se quisesse ser parte da música que adentrava-lhe a alma pelos fones de ouvido. Deveria estar entrando na sala de aula para assistir ao professor falar durante duas horas sobre biofísica. Deveria. Ela nunca matava aula, nem quando estava com febre, nem quando o mundo desabava do lado de fora. Mas hoje era diferente, não era uma dor física, não era o mundo que desabava lá fora. Era o seu mundo que desabava dentro dela. Incenso fosse música, era o poema. Felicidade, era a música. E era tudo o que ela queria naquele momento. Que ela fosse incenso e fosse música e fosse felicidade. Mas como ser? Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além isso que de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além felicidade é só questão de ser. Ser. Ela já não sabia mais quem era. No ir e vir de tantas aulas e estudos, fórmulas, equações, correntes oceânicas, revolução industrial, guerra fria, ela esquecera de pensar em si. Esquecera-se. Agora lembrava. Lembrava que amava poesia e música. Lembrava que amava cinema e escrever. Com esforço, ainda entrevia-se e sabia que poderia recuperar-se e recuperar a si mesma. Mas para isso, não poderia sucumbir, teria de lutar. Lutar para ser exatamente aquilo que a gente é. Para ir além. Pois tem vezes que as coisas pesam mais do que a gente acha que possa aguentar, nessas horas fique firme, pois tudo isso logo vai passar. 

Plantão 1

Parecia um dia de domingo tranquilo, sem grandes acontecimentos. Aquele seria o seu primeiro plantão. Ela chegara mais cedo e ficara aguardando o veterano que iria lhe guiar. Logo ele chegou, dirigiram-se para a emergência: não havia nada. Algumas pessoas nos leitos dos quartos e cadeiras vazias. Nada do médico do plantão que acompanhariam. Aguardaram na sala por alguns momentos até que decidiram colocar o jaleco e partir em busca de algo. Encontraram, deitado em uma maca no corredor, um senhor que havia sofrido uma queda e que apresentava sinais de que bebera. Tentaram comunicar-se com ele, mas em vão. O máximo que descobriram foi que lhe doía a cabeça. Visitaram alguns leitos, perambularam. Tentaram falar com um médico porém ele era clínico. Onde estaria o cirurgião? Ao voltarem para o senhor que caíra, viram que havia um homem falando com ele. Dr. Germano: provavelmente mil anos e outras mil grosserias. 
O que ela esperava?
Explicações calmas, não ter medo de errar, sentir-se à vontade para perguntar e não ter vergonha de não saber nada ou quase nada, visto que tinha menos de dois meses de medicina na bagagem.
O que ela encontrou?
Um médico que respondia a perguntas de forma rude e irônica, que fez ela se sentir menos que um nada e que não aparentava ter um pingo de humanidade. "Ele nascera sabendo, será?" Porque qualquer um que já fora jovem e inexperiente uma vez na vida teria a alteridade de ser prestativo e oferecer conforto. 
Depois de muitos golpes que projetaram sua dignidade para quilômetros de distância, depois de respirar fundo inúmeras vezes e depois de segurar o choro outras tantas, ela foi entendendo melhor como tudo funcionava ou como não funcionava ou como funcionava diferentemente da maneira como realmente deveria funcionar. Conheceu Maria Ângela e sua ponte engolida, Mariana e o corte na testa, senhor V. e a mordida de cachorro, Deivid e o corte de serra elétrica, o senhor José Maria e a cabeça que doía, o bebê Lorenzo que havia feito o que ela inúmeras vezes fizera quando criança: batera a cabeça, levando a família à loucura e, por fim, conheceu William, rapaz de 19 anos de idade que tinha em seu pé direito uma bala de projétil. Foram muitos pacientes e, por trás de cada um deles e de suas feridas, uma história, uma preocupação na cabeça, alguém à espera de uma informação ou então ninguém para compartilhar o sofrimento. 
Diante de tudo isso, o único pensamento que lhe ocorria era que cada uma daquelas pessoas merecia ter recebido um tratamento melhor, um tratamento mais humano, um olhar, um aperto de mão, um sorriso, um "vai ficar tudo bem" ou então um "você precisa se cuidar melhor", "você tem como comprar o remédio?", "você sabe o que fazer, como proceder?", um tratamento mais digno. Em meio a essa efusão de pensamentos, ouviu uma enfermeira comentar com o médico: "Esses dois são novinhos, não é?" Ao que o médico respondeu: "São sim, primeiro e segundo ano." "A gente percebe mesmo, quando eles querem ajudar todo mundo, esses não perderam a humanidade ainda." Ainda. Ainda? Aquilo ecoou profundamente atingindo o âmago de tudo o que ela acreditava e era. Como assim ainda? A jovem e o veterano trocaram olhares tristes e assustados "Será que isso vai acontecer com a gente?" ele perguntou para ela. "Não." Respondeu firmemente. E jurou para si mesma:
"Não, eu nunca chegarei ao ponto de ver um machucado no dedo do pé de uma pessoa como algo desimportante e que pode esperar 3h até receber atendimento. Não, eu não deixarei de olhar para as pessoas e de enxergar nelas um mundo inteiro de sentimentos, esperanças e medos que merecem toda a minha atenção e paciência. Não, eu não deixarei de ser humana e de dar àquele que depende do meu atendimento, o melhor de mim, todo o meu conhecimento, meu mais sincero bom dia, boa tarde, boa noite, qual é o seu nome, o que houve com você, um sorriso e um olhar sincero."


Sei que foi apenas um plantão e sei que existe um mundo de decepções pela frente, mas espero que toda vez que eu estiver prestes a deixar a peteca cair, eu possa voltar a esse texto e me lembrar de quem eu sou, do que eu acredito, respirar fundo e seguir.